É na cozinha que eu desembesto e solto
todos os bichos. É na cozinha que eu
viajo sem passaporte, sem bilhete, sem
revista em aeroportos. As autoridades
querem minhas digitais? Elas estão na
massa do pão. Querem minha foto?
Tenho várias, de frente e de lado com
meus pais e irmãos e com os que vieram
depois. Retratos falados - em voz alta,
a família toda ao mesmo tempo.
Destrambelhada família. Sagrada família...
Preciso me concentrar. É essencial. Por quê?
Ora, que pergunta! Família é prato difícil de
preparar. São muitos ingredientes. Reunir
todos é problema - principalmente no Natal
e no Ano-Novo. Pouco importa a qualidade
da panela, fazer uma família exige coragem,
devoção e paciência. Não é pra qualquer um.
Os truques, os segredos, o imprevisível.
Às vezes dá até vontade de desistir.
Preferimos o desconforto do estômago vazio.
Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação
sobre o que se vai comer e aquele fastio.
Mas a vida - azeitona verde no palito - sempre
arruma um jeito de nos ensinar e abrir o apetite.
O tempo põe a mesa, determina o número de
cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre,
a família está servida. Fulana sai a mais inteligente
de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão
e comunicativo, unanimidade. Sicrano - quem diria?
- solou endureceu, murchou antes do tempo. Este,
o mais gordo e generoso, farto, abundante. Aquele
o que surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais
apaixonada. A outra, a mais consistente.
E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos
e veio me fazer companhia. Como saiu no álbum de
retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental?
A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho?
Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do
grau comparativo. Reúna essas tantas afinidades e
antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa.
Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo. Agora, ponha
o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome
alguns cuidados. Logo, logo, você também está cheirando
alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é
prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria,
de raiva ou tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor
do parentesco. Mas, se misturadas com delicadeza,
essas especiarias - que quase sempre vêm da África
e do Orientee nos parecem estranhas ao paladar -
tornam a família muito mais colorida, interessante
e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas.
Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto,
é um verdadeiro desastre. Família é prato
extremamente sensível.
Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem
medido. Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser
profissional. Principalmente na hora que se decide
meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte.
Uma grande amiga minha desandou a receita de toda
a família, só porque meteu a colher na hora erada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da
família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe
"Família à Oswaldo Aranha", "Família à Rossini",
"Família à Belle Meunière ou "Família ao Molho Pardo" -
em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria.
Família é afinidade, é "à Moda da Casa". E cada casa
gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras,
apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto
de nada - seriam assim um tipo de "Família Diet", que
você suporta só para manter a linha. Seja como for, família
é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo.
Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Há famílias, por exemplo, que levam muito tempo para serem
preparadas. Fica aquela receita cheia de recomendações de se
fazer assim ou assado - chatice! Outras, ao contrário, se fazem
de repente, de uma hora para outra, por atração física incontrolável
- quase sempre de noite. Você acorda de manhã, feliz da vida, e
quando vai ver já está com a família feita. Por isso é bom saber
a hora certa de abaixar o fogo. Já vi famílias abortadas por causa
de gogo alto.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa.
A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo
o que sabe no dia-a-dia. A gente cata um registro ali, de alguém
que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente, na cabeça
de um velho já meio caduco como eu. O que este veterano
cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja
o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer.
Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o
pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio
ou no barro. Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando acaba,
nunca mais se repete.
( Do livro: O Arroz de Palma, Francisco Azevedo )
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