segunda-feira, 2 de junho de 2008

A Mulher de São Jorge


Cabia o mundo em seus olhos castanhos, quase esverdeados, abrilhantados por todas as estrelas dos sonhos mais infantis.
Pelo retrovisor, avistava os faróis no engarrafamento gigantesco.
Soprava um vento gelado contra os vidros da janela do seu automóvel, fazendo embaçar a visão, distorcer a realidade.
Nada conseguia se mover em quilômetros no abarrotar da rodovia.
E o rádio tocava músicas antigas de amores desperdiçados,

que a fez recordar o quanto duro era seu coração.
Seus dedos dos pés franziram, os pêlos arrepiaram
e o corpo ficou trêmulo.
Deitou a cabeça sobre o volante e fraquejou
no arquear das sobrancelhas,
que se alongou até as pálpebras,
fazendo-a cair num adormecer profundo,
quase moribundo.
Permaneceu por algum tempo naquela posição,
sob o ronco amortecido do motor,
abafada por dezenas de buzinas raivosas.
Quando acordou, sentiu a boca amarga em enxofre,
a pele seca e enrugada feito escama de peixe.
De tão enfastiada e atordoada,
parecia que tinha hibernado por meses, anos, séculos...
Confusa,
olhou o próprio reflexo através de um espelho no porta-batom.
Gritou amedrontada, de pavor e nojo!
Virara um dragão, de cor avermelhado,
com longas garras, asas enormes
e dentes afiados que se entrelaçavam a finos bigodes.
Retorceu-se dentro do carro,
assustada com seu estado grotesco de besta,
e arrancou as poltronas
e abriu o teto com uma rajada de fogo incandescente!
Voou rumo a uma constelação distante
para curar a ira de ter perdido,
na rotina das pequenas chateações,
a meiguice encantada de mulher.
Taciano de Jesus Mattos


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